Amanda Lemes - Advogada, Mestra em Políticas Públicas e Gestão, Diretora da Empodere-se
A violência no ambiente de trabalho, em suas múltiplas formas, não é um fenômeno
recente, mas sua naturalização persiste como um dos maiores entraves à
construção de espaços laborais equitativos. Como profissional dedicada há mais de
uma década ao estudo e ao enfrentamento desse problema — com mais de 300
workshops, oficinas e palestras ministradas sobre segurança feminina,
empoderamento e combate à violência em ambientes corporativos —, afirmo com
clareza: o assédio é estrutural. Ele se alimenta de hierarquias rígidas, da
desigualdade de gênero e de uma cultura organizacional que, muitas vezes, prioriza
resultados sobre pessoas.
Os dados são elucidativos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), 52% das mulheres brasileiras já sofreram assédio no trabalho, sendo que,
para 76% delas, a violência partiu de superiores hierárquicos. Homens negros e
mulheres trans relatam índices ainda mais alarmantes de discriminação e violência
psicológica, evidenciando a intersecção entre machismo, racismo e LGBTQIA+fobia.
O assédio, portanto, não é um desvio de conduta individual, mas um mecanismo de
manutenção de privilégios. Ele silencia vozes, limita carreiras e consolida ambientes
onde a dignidade é negociável.
A complexidade do fenômeno exige que olhemos além das definições legais. O
assédio moral, caracterizado por humilhações e perseguição sistemática, e o
assédio sexual, marcado por avanços físicos ou verbais não consentidos, são
apenas as faces mais visíveis. Há violências mais sutis, porém igualmente danosas:
piadas misóginas em reuniões, a exclusão de profissionais LGBTQIA+ de projetos
estratégicos, ou a cobrança por horas extras abusivas, justificadas como "dedicação
à empresa". Todas essas práticas corroem a saúde mental, elevam índices de
absenteísmo e afastam talentos — um custo que, segundo a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), chega a 3,5% do PIB global anual.
A legislação brasileira, embora avançada em aspectos normativos — como a Lei
14.457/2022, que atualiza as regras de combate ao assédio no serviço público e
privado —, ainda falha em garantir justiça. O Ministério Público do Trabalho
registrou, em 2023, que 68% das denúncias de assédio são arquivadas por "falta de
provas", um reflexo da dificuldade em documentar violências que frequentemente
ocorrem sem testemunhas ou em contextos de subordinação. Essa realidade expõe
uma contradição: enquanto o direito avança, a cultura organizacional permanece
refém de estruturas arcaicas.
A NR-1 e a Inovação na Prevenção de Riscos Psicossociais
A recente atualização da Norma Regulamentadora 1 (NR-1), que estabelece
diretrizes gerais para gestão de saúde e segurança ocupacional, trouxe um avanço
significativo ao incluir explicitamente os riscos psicossociais como parte integrante
das políticas empresariais. Pela primeira vez, o assédio é reconhecido não apenas
como uma violação ética, mas como um risco ocupacional que demanda ações
preventivas estruturadas. A norma exige que as empresas identifiquem, avaliem e
controlem fatores como pressão excessiva, assédio moral e sexual, e discriminação,
integrando esses elementos aos Programas de Prevenção de Riscos Ambientais
(PPRA) e aos Planos de Gestão de Riscos (PGR).
Esse marco legal reforça o entendimento de que a segurança no trabalho não se
limita a equipamentos de proteção individual ou condições físicas adequadas. Ela
abarca, também, a integridade psicológica. No entanto, a implementação prática da
NR-1 esbarra em desafios históricos: a falta de capacitação técnica para lidar com
violências intangíveis e a resistência de setores que ainda veem o combate ao
assédio como "custos desnecessários".
Educação como Eixo de Transformação
Em minhas pesquisas e práticas profissionais, constatei que a capacitação contínua
de lideranças e equipes é o único caminho para desmontar mitos como "brincadeira
inofensiva" ou "exigência do cargo". O Protocolo Assédio Zero, metodologia
desenvolvida pela Empodere-se, parte desse pressuposto. Ele não se limita a treinar
colaboradores para identificar riscos, mas propõe uma reestruturação de processos,
com ênfase em comunicação assertiva, gestão de conflitos e canais de denúncia
seguros.
A NR-1, em sua nova redação, oferece um arcabouço legal para que iniciativas como
essa ganhem escala. Ao vincular a prevenção do assédio à gestão de riscos
ocupacionais, a norma convoca empresas a adotarem medidas proativas — como
treinamentos periódicos e políticas de tolerância zero —, transformando obrigações
legais em oportunidades para a mudança cultural.
Contudo, a verdadeira transformação exige algo além de protocolos. Exige que
reconheçamos o assédio como um problema coletivo, não individual. Empresas que
atribuem casos isolados a "falhas de caráter" ignoram sua responsabilidade em
perpetuar dinâmicas de poder tóxicas. Líderes que terceirizam a solução para
departamentos jurídicos ou de RH, sem engajamento pessoal, reforçam a ideia de
que o respeito é um item de compliance, não um valor ético.
Redefinindo a Produtividade: Dignidade como Alicerce
Como sociedade, precisamos urgentemente redefinir o que entendemos por
"produtividade". Ambientes marcados por medo e opressão podem gerar lucro a
curto prazo, mas estão fadados à erosão de talentos e à perda de credibilidade. A
experiência internacional comprova isso: empresas listadas no Índice de Equidade
de Gênero da Bloomberg, por exemplo, apresentam desempenho 25% superior à
média de mercado, evidenciando que diversidade e respeito são vetores de
inovação.
A NR-1, em sua abordagem inovadora, alinha-se a essa visão. Ao tratar o assédio
como risco ocupacional, ela sinaliza que a saúde psicológica dos colaboradores é
tão vital quanto sua segurança física — um passo crucial para desmontar a falsa
dicotomia entre "eficácia" e "humanização". Ou mesmo a superficial separação entre
corpo e mente.
Conclusão: Do Diagnóstico à Ação Coletiva
Ao final, retorno à minha trajetória. Os mais de 300 workshops que conduzi não
foram apenas espaços de transmissão de conhecimento, mas de escuta. Ouvi
relatos de pessoas que, após anos de silêncio, encontraram coragem para
denunciar. Acompanhei equipes que transformaram hierarquias opressoras em
modelos colaborativos. Testemunhei, enfim, que a mudança é possível quando
substituímos a cumplicidade pelo enfrentamento.
O convite que deixo é claro: não basta condenar o assédio, ou apenas encontrar os
responsáveis individualmente. É preciso agir — com políticas robustas, educação
constante e, acima de tudo, com a coragem de priorizar pessoas sobre privilégios. A
NR-1 não é apenas uma norma: é um convite à ação. Só assim construiremos
ambientes de trabalho nos quais a excelência ande de mãos dadas com a
dignidade.
Do Cumprimento Legal à Mudança Sistêmica
A NR-1, em sua atualização pioneira, não é apenas um texto normativo: é um convite
à reflexão sobre o que significa, de fato, garantir segurança no trabalho. Ao
reconhecer o assédio como risco ocupacional, ela desafia organizações a
transcenderem a mera conformidade jurídica e a adotarem uma postura proativa —
uma que entenda que ambientes saudáveis são construídos com educação, diálogo
e políticas que valorizem a vida acima do lucro.
Nesse contexto, iniciativas como o Workshop Protocolo Assédio Zero, promovido
pela Empodere-se ganham relevância não como produtos, mas como ferramentas
de transição entre o status quo e a transformação. Desenvolvido a partir de uma
década de pesquisa aplicada e implementado em diversas organizações, o
workshop opera em três dimensões:
1. Desnaturalização do Assédio: Substitui a cultura do silêncio por linguagem
nítida e conscientização coletiva.
2. Capacitação Técnica: Ensina lideranças a identificarem riscos psicossociais e
a atuarem como agentes de proteção, não apenas de produtividade.
3. Integração com a NR-1: Oferece metodologias práticas para incorporar a
prevenção de assédio aos planos de gestão de riscos, alinhando-se às
exigências legais sem perder de vista a humanização.
Os resultados, como demonstrado em instituições parceiras, vão além da redução
de conflitos: incluem a reconstrução de relações de confiança, o fortalecimento de
marcas empregadoras e a criação de espaços onde a inovação floresce a partir do
respeito.
A mensagem final é nítida: normas como a NR-1 são pontes, não destinos. Cabe a
nós — líderes, gestores, juristas e sociedade — decidir se as usaremos para
perpetuar estruturas ou para pavimentar caminhos mais éticos. O combate ao
assédio não é um projeto de compliance, mas um compromisso civilizatório. E é
nessa fronteira entre o legal e o humano que reside a verdadeira excelência
organizacional.
Amanda Lemes é referência nacional no combate à violência de gênero e através de
sua empresa Empodere-se é idealizadora de metodologias que integram legislação,
educação e justiça social. Seus projetos já impactaram mais de 8 mil profissionais em
todo o Brasil.