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Autodefesa Feminina: uma inovação em Política Pública no Combate à Violência contra as Mulheres

AMANDA LEMES

Este ensaio nasce de uma iniciativa ousada e transformadora, fundamentada no compromisso de combater as múltiplas faces da violência contra as mulheres. Baseado na experiência da Empodere-se Defesa Pessoal Feminina que atua há 7 anos no ensino da Autodefesa, tendo ensinado mais de 7 mil mulheres em instituições por todo o Brasil;  no projeto O Ensino da Autodefesa Feminina como Instrumento para Emancipação das Mulheres em Campinas-SP e na experiência da autora deste ensaio que vos escreve, na lida direta como investigadora da Polícia Civil do Paraná no atendimento a mulheres vitimizadas pela violência, por 4 anos e meio. Este trabalho reúne reflexões e vivências de um método pioneiro que articula o empoderamento físico, emocional, psicológico e político como ferramentas de emancipação.

A proposta transcende as barreiras das oficinas e formações, consolidando-se como uma construção coletiva voltada à formulação de políticas públicas em sua etapa mais recente ao ter sido aprovado como termo de fomento em edital pelo Ministério das Mulheres. Por meio de metodologias inspiradas na educação popular, feminismo interseccional e uma perspectiva ética de sororidade, este trabalho ao longo dos anos e este projeto desenvolve e implementa um modelo inovador de formação de multiplicadoras em autodefesa feminina.

Em uma sociedade marcada por desafios históricos e estruturais que perpetuam a violência de gênero, o ensino da autodefesa feminina torna-se uma resposta prática e simbólica. Ele fortalece não apenas os corpos, mas também as redes de apoio e os processos de subjetivação das mulheres que, ao ressignificar suas experiências, tornam-se agentes ativas de transformação social.

Ao longo do texto, a leitora é convidada a percorrer uma jornada que entrelaça teoria e prática, história e contemporaneidade, destacando as possibilidades da Autodefesa Feminina como ferramenta e política pública replicável em outros contextos.

Este ensaio celebra, portanto, a luta pela emancipação das mulheres, reafirma o direito ao corpo soberano e propõe uma revolução silenciosa, porém poderosa, ancorada no ensino, na prática e na resistência coletiva.

Não é sobre força, é sobre poder!

A violência contra as mulheres não é sobre força, mas sim sobre poder. Ela é a manifestação de uma relação de dominação histórica que busca subjugar e silenciar as mulheres, sustentando estruturas que perpetuam desigualdades. Embora a sociedade contemporânea, em sua maioria, já não verbalize abertamente a ideia de que a força física masculina seja a causa ou justificativa da violência contra as mulheres, essa crença ainda opera de maneira silenciosa e insidiosa. O mito de que os homens são intrinsecamente mais fortes e, portanto, inevitavelmente dominantes, ainda molda imaginários e comportamentos, reforçando a ideia de fragilidade feminina como algo natural e intransponível.

Esse mito contribui para a manutenção da violência, mas também impede que se compreenda sua verdadeira natureza: a violência contra as mulheres é um fenômeno de poder, e não de força. Ela se insere em um contexto social que sistematicamente condiciona as mulheres à paralisia diante de ameaças. Esse estado de paralisação – tão frequentemente testemunhado em casos de violência – não é uma falha individual ou biológica, mas um fenômeno social que mutila os mecanismos naturais de defesa.

Na natureza, todos os seres vivos desenvolvem formas de defesa para garantir sua sobrevivência. No entanto, as mulheres são as únicas em quem esses mecanismos têm sido sistematicamente desativados. Por meio de processos culturais e sociais, as mulheres foram educadas a se submeter, a evitar conflitos e a internalizar sentimentos de medo e culpa. Isso as torna vulneráveis à violência em si e também à perpetuação de ciclos que reforçam sua condição de subalternidade.

A autodefesa feminina e os protocolos de segurança são ferramentas capazes de reverter esse processo de mutilação social. Quando uma mulher aprende a reconhecer sinais de perigo, a usar seu corpo como instrumento de defesa e a estabelecer limites nítidos, ela não está apenas reaprendendo a se proteger fisicamente. Ela está reconstruindo os mecanismos que a sociedade tentou apagar: a confiança em si mesma, a capacidade de reagir e a percepção de que ela não é vítima passiva, mas protagonista de sua própria história.

Mais do que ensinar técnicas, a autodefesa empodera as mulheres a ocuparem o centro da elaboração de soluções para a violência que enfrentam. Ela devolve às mulheres a autonomia sobre seus corpos e decisões, permitindo que elas se reconectem com uma força que é para além foi de física, que sempre esteve presente: a força de sua determinação, de sua resiliência e de sua capacidade de transformar realidades.

Neste sentido, a autodefesa feminina é uma ferramenta prática; é também uma postura ética e política que reivindica o direito das mulheres de viverem sem medo, de ocuparem todos os espaços com segurança e de se tornarem agentes ativas na desconstrução de um sistema que historicamente tentou silenciá-las. É um ato revolucionário de afirmação e emancipação.

O Sentimento de Culpa da Mulher Vítima de Violência 

Toda mulher que, em algum momento, reconheceu ter vivido um episódio de violência, conhece o peso esmagador da culpa. Esse sentimento, tão comum quanto cruel, corrói a percepção de si e reforça o isolamento, perpetuando ciclos de dor e silêncio.

As campanhas dizem: "A culpa nunca é da vítima!" Mas, muitas vezes, a mulher vitimizada não consegue acreditar nisso. Pode até reconhecer a inocência de outras vítimas, mas, quando olha para si mesma, carrega uma culpa que parece inescapável. Essa culpa, longe de ser um fenômeno individual, tem raízes profundas e multifacetadas, enraizadas em estruturas históricas, sociais e culturais.

A origem da culpa

A primeira fonte de culpa surge do próprio senso de responsabilidade que nos constitui como seres humanos adultos. Quando ouvimos que não temos culpa alguma, o pensamento crítico – fruto da maturidade – nos desafia. “Eu estava lá”, pensamos. “Eu escolhi me relacionar com essa pessoa. Eu participei da discussão. Eu me envolvi nessa relação perigosa.” A narrativa da culpa se entrelaça com a ideia de falha pessoal, como se a violência sofrida fosse o resultado de uma guerra perdida, e não de uma agressão imposta.

A segunda fonte é histórica e simbólica: fomos socializadas para carregar a culpa de tudo. Desde os mitos fundadores da humanidade, como o de Eva, a mulher é retratada como culpada pelos “pecados originais”. Essa construção simbólica transborda para as relações sociais. Séculos de opressão legitimaram a tortura, o estupro e a morte de mulheres sob o argumento de que foram "culpadas" por não se conformarem a papéis subservientes e submissos. Essa carga histórica nos condicionou a internalizar a culpa como parte intrínseca de nossa existência.

A terceira fonte de culpa vem da sociedade. Assim como as mulheres foram treinadas a se culpar, a sociedade também foi treinada a culpá-las. Ainda que discursos éticos e racionais digam que “a culpa nunca é da vítima”, o comportamento social frequentemente contradiz essa afirmação. A sociedade se apressa a questionar as escolhas da mulher: “Por que você estava vestida assim?”, “O que fazia naquele lugar, naquela hora?”, “Por que ficou com ele tanto tempo?” Essas perguntas, ao invés de buscar justiça, tentam encontrar justificativas para inverter o ônus da culpa. E, para que uma mulher seja vista como uma vítima “real” – ou seja, uma vítima digna de empatia e proteção –, ela precisa se encaixar em um modelo idealizado e inatingível: a vítima perfeita.

Porém, na prática, nenhuma mulher é considerada vítima perfeita. Nem mesmo nos casos mais brutais, como quando uma mulher é abusada por dezenas de homens sob circunstâncias inimagináveis, a sociedade a reconhece unanimemente como vítima. Essa necessidade de validar constantemente o sofrimento feminino é um reflexo de um sistema que desumaniza e revitimiza as mulheres.

O peso da resusa de ser vítima

A quarta e talvez mais dolorosa fonte da culpa é o desejo de evitar o rótulo de vítima. As mulheres sabem que, na sociedade, ser vista como vítima significa ser infantilizada, desacreditada e, muitas vezes, institucionalizada ou marginalizada. Sabem que, ao assumir esse papel, estão se expondo a uma nova camada de violência: a revitimização. Os sistemas jurídico, social e até familiar muitas vezes deslegitimam a palavra das vítimas, transformando-as em alvo de mais julgamentos e punições.

Para evitar esse destino, muitas mulheres preferem vestir a capa da culpa. Assumir a responsabilidade pelo que aconteceu, ainda que de forma irracional, parece menos doloroso do que enfrentar o vazio de uma sociedade que não acolhe, não acredita e não ampara. Tendo como resultado um generalizado gaslighting social ao qual todas as mulheres estão expostas.

a Autodefesa como caminho para a reconstrução

É nesse contexto que a autodefesa feminina e os protocolos de segurança ganham um papel crucial. Essas ferramentas ajudam as mulheres a lidarem com situações de risco, e também oferecem um caminho para ressignificar suas experiências. A autodefesa rompe com o ciclo de paralisação e culpa, devolvendo às mulheres o controle sobre seus corpos e decisões.

Ao aprenderem a se defender, as mulheres recuperam os mecanismos de proteção que a sociedade lhes roubou. Elas compreendem que a violência não é culpa delas, mas uma imposição que pode ser enfrentada e desconstruída. Mais do que técnicas físicas, a autodefesa promove um reencontro com a própria força e com o próprio poder, uma reconquista da autonomia e uma reafirmação do direito de existir sem medo e sem culpa.

Esse processo é transformador porque coloca as mulheres no centro da elaboração de soluções para a violência que sofrem. Ele não apaga as marcas do passado, mas ajuda a reescrever a narrativa, substituindo a culpa pela ação, a vulnerabilidade pelo empoderamento e a resignação pela resistência.

No final, a autodefesa é uma prática; é um ato político, é uma declaração de soberania e uma resposta direta a séculos de opressão. É a chave para que as mulheres possam não apenas sobreviver, mas viver plenamente – livres do peso da culpa e do medo.

O que falta ao atual sistema de combate à violência contra a mulher no Brasil?

Por quatro anos e meio, trabalhei como investigadora da Polícia Civil no Paraná, atendendo centenas de mulheres vitimizadas pela violência masculina. Entre 2013 e 2017, lidei com cerca de dois mil casos de violência contra mulheres e meninas, testemunhando diariamente como o sistema é insuficiente para proteger e prevenir tais crimes.

Naquele período, a Lei Maria da Penha ainda era relativamente nova, mas os desafios que identifiquei permanecem incrivelmente atuais. Em todas as cidades onde trabalhei, os casos de violência contra a mulher representavam cerca de 70% dos inquéritos instaurados e eram a maior parte das ocorrências atendidas pela polícia militar e nos plantões noturnos das delegacias. Ainda assim, na formação profissional da Polícia Civil do Paraná, não havia sequer uma hora dedicada ao tema da violência contra a mulher.

Dentro das delegacias, a percepção geral era de que crimes enquadrados na Lei Maria da Penha não eram “crimes reais”. Esses casos eram vistos como “fuleragem”, um termo depreciativo usado para desqualificar situações que, na visão de muitos policiais, apenas ocupavam o tempo de uma instituição que deveria se dedicar a “crimes de verdade”. Esse desprezo era agravado pela alta taxa de desistência das denunciantes, já que mais de 90% das mulheres acabavam pedindo para retirar as queixas, muitas vezes por terem retornado ao relacionamento abusivo.

Além disso, a aplicação da Lei Maria da Penha dependia de um cálculo de conveniência: agressores só eram presos se seus atos fossem combinados com outros crimes considerados mais “valiosos” pela polícia, como tráfico de drogas. Quando um homem batia na esposa, o caso geralmente era ignorado, a menos que ele fosse um criminoso já procurado.

A Misoginia no Sistema Policial

A Polícia Civil, que deveria ser a principal porta de entrada para mulheres em busca de ajuda, é uma instituição profundamente masculina e violenta. As mulheres policiais enfrentam um ambiente hostil, com equipamentos inadequados, linguagem misógina e assédio sexual endêmico. Coletes balísticos são feitos para corpos masculinos, armas não são adaptadas para mãos femininas, e o trabalho de campo é muitas vezes reservado aos homens.

Esse é o contexto em que a Lei Maria da Penha opera. Mulheres que já foram vitimizadas pela violência masculina frequentemente enfrentam uma segunda vitimização ao entrar em uma delegacia. Lá, muitas vezes, têm suas experiências minimizadas, são desacreditadas e sujeitas ao mesmo machismo que permitiu a perpetuação da violência que sofreram.

O Limite da Lei

Apesar de sua importância, a Lei Maria da Penha é limitada por sua natureza reativa. Como toda legislação penal, ela atua após o crime já ter sido cometido. Quando a Lei é acionada, a violência contra a mulher já atingiu suas maiores proporções. O sistema que deveria protegê-las falha em atuar preventivamente, deixando-as expostas a um ambiente que constantemente silencia, invisibiliza e explora suas vulnerabilidades.

A sociedade, ao longo de séculos, construiu um terreno fértil para a violência contra as mulheres. Desde o nascimento, somos condicionadas à subserviência e à culpa. Nossos mecanismos naturais de defesa são mutilados, e o trabalho não remunerado e invisível que realizamos é romantizado, enquanto nosso silenciamento é normalizado. Quando finalmente buscamos ajuda, somos entregues a uma estrutura estatal profundamente misógina, que frequentemente agrava nosso sofrimento em vez de mitigá-lo.

A Urgência da Autodefesa Feminina

Para que o sistema de combate à violência seja realmente eficaz, precisamos de ferramentas que atuem antes que a violência atinja o nível do crime. A Lei Maria da Penha é essencial, mas insuficiente. Ela não protege as mulheres; ela tenta resgatá-las depois de terem sido agredidas.

É aqui que a autodefesa feminina surge como uma solução transformadora. Não se trata apenas de técnicas físicas para repelir um agressor, mas de um conjunto de práticas que capacitam as mulheres a reconhecer sinais de perigo, identificar categorias de violência e criar protocolos de segurança personalizados.

A autodefesa feminina é uma prática de sobrevivência e emancipação. É um convite para que as mulheres se tornem protagonistas na prevenção e enfrentamento da violência estrutural que as cerca. Mais do que uma estratégia individual, ela é uma proposta coletiva que fortalece redes de apoio, promove consciência sobre a violência sistêmica e inspira respostas à altura dos desafios que enfrentamos.

Por meio da autodefesa, as mulheres recuperam o poder que lhes foi sistematicamente negado. É um passo crucial para que possamos construir um futuro em que não apenas sobrevivamos, mas vivamos plenamente – com segurança, dignidade e autonomia.

Descolonizando o Corpo-Mulher

A violência contra a mulher é uma estrutura que se manifesta em todos os âmbitos da vida social, mas raramente é compreendida em sua totalidade. Para muitas mulheres, a percepção dessa violência emerge de experiências dolorosas: o abuso sofrido na infância, um namoro que começa cheio de promessas e se transforma em abuso, a sobrecarga esmagadora da maternidade, ou as desigualdades no mercado de trabalho. Para outras, essa compreensão só ocorre após episódios de violência física. E, para algumas, infelizmente, a conscientização nunca chega – um silêncio que pode custar suas vidas.

No entanto, poucas mulheres conseguem enxergar a violência contra a mulher como um sistema que permeia todos os aspectos de nossa existência. A violência não se limita a episódios pontuais de abuso físico; ela está nas desigualdades salariais, na sobrecarga de trabalho de cuidado, na subestimação de nossas capacidades, no assédio sexual no trabalho e na importunação nos espaços públicos. Esses fenômenos não são “coisas diferentes” da violência, mas expressões de um mesmo sistema que opera de maneira interligada, contínua e insidiosa.

A Colonização do Corpo e da Mente

Uma das estratégias mais perversas desse sistema é reduzir a violência contra as mulheres a categorias limitadas e abstratas, sugerindo que não há nada que possamos fazer além de esperar pela proteção de terceiros. O pai, o marido, o Estado – sempre figuras masculinas – são apresentados como os únicos capazes de nos salvar. Ironicamente, esses mesmos “protetores” frequentemente são também os agressores.

Essa alienação da capacidade de autoproteção é uma forma de colonização. Nossos corpos são explorados, nossa força é reconhecida apenas quando serve ao trabalho de cuidado e manutenção da vida, mas nossa capacidade de reagir e nos defender é sistematicamente negada. Quando se trata de proteger os filhos, por exemplo, somos autorizadas a ativar mecanismos de proteção, mas quando o alvo da violência somos nós mesmas, somos ensinadas a paralisar, a confiar no agressor e a “reduzir os danos”.

Essa paralisia não é natural, mas construída. Ela é um reflexo de uma mutilação histórica que começa na narrativa cultural, atravessa a espiritualidade – na qual as figuras femininas são frequentemente apagadas – e se instala visceralmente em nossos corpos. Fomos condicionadas a acreditar que a violência não pode ser combatida com força, que reagir seria “se rebaixar” ao nível do agressor. Esse discurso nos transformou em objetos de posse, imóveis diante da violência masculina.

O Corpo em Movimento: Reaprendendo a Defender-se

Reverter essa colonização começa com a reapropriação dos nossos corpos. O aprendizado da autodefesa não é apenas técnico; ele é simbólico e emancipador. Ensinar mulheres a darem um chute eficaz, por exemplo, é um exercício que vai além da força física. É um processo de redescoberta de capacidades que foram sistematicamente apagadas. O mesmo movimento usado para amassar uma latinha pode ser redirecionado ao joelho de um agressor. Esse simples gesto ressignifica o corpo como instrumento de reação, e não de submissão.

Uma experiência marcante que ilustra esse processo ocorreu durante meu trabalho como investigadora da Polícia Civil. Ao atender uma mulher vítima de recorrentes tentativas de estrangulamento por parte de seu marido, ensinei-lhe uma técnica básica de escape. Dias depois, ela voltou à delegacia para me contar que, ao reagir pela primeira vez, conseguiu interromper o ciclo de violência e sair de casa com seus filhos. Foi nesse momento que percebi que a autodefesa vai além do físico: ela ativa algo no corpo e na mente, permitindo que mulheres reconheçam a estrutura da violência e suas próprias possibilidades de reação.

O Poder do NÃO

Ao longo de sete anos e mais de 300 oficinas de autodefesa realizadas em 12 estados do Brasil, vi como o aprendizado corporal transforma a maneira como as mulheres percebem a si mesmas e suas possibilidades. Cada movimento ensinado é acompanhado pelo exercício do grito – o grito do “NÃO”. Sempre digo que há um “NÃO” engasgado na garganta de todas as mulheres, um “NÃO” contido em corpos encolhidos pela violência. Quando uma mulher aprende a dizer “NÃO” com firmeza, ela não apenas impõe limites ao agressor; ela rompe com séculos de silenciamento e submissão.

A autodefesa feminina, nesse sentido, é um ato revolucionário. É uma resposta prática à violência e um processo de descolonização dos corpos e mentes das mulheres. Ela nos ensina que podemos – e devemos – reagir. Que nossos corpos não são passivos, mas territórios de resistência. Que a violência masculina não é um destino, mas um fenômeno que pode ser enfrentado com coragem, força e sororidade.

Essa prática é, ao mesmo tempo, um instrumento individual e coletivo. Ela nos reconecta com nossa capacidade de nos proteger, mas também fortalece laços entre mulheres, promovendo redes de apoio e resistência. Mais do que uma técnica, a autodefesa feminina é uma linguagem que reivindica o direito de existir plenamente – sem medo, sem culpa, e sem permissão para sermos colonizadas novamente.

O Desmaio por Dentro

A primeira relação abusiva que toda mulher precisa superar é consigo mesma. Essa ideia pode parecer, à primeira vista, uma culpabilização da vítima, mas é exatamente o contrário. Trata-se de reconhecer que a violência contra a mulher é tão estrutural, tão profundamente enraizada, que sua reprodução começa dentro de nós, condicionadas desde sempre a nos conformarmos com a violência e a culparmos a nós mesmas por ela.

A violência masculina que enfrentamos externamente reflete uma violência simbólica e silenciosa que foi instalada em nosso íntimo. Se o problema fosse apenas o comportamento dos homens, e nós, mulheres, fôssemos somente amor, cuidado e resistência, a solução seria simples: ao menor sinal de violência, voltaríamos a nós mesmas, nos protegeríamos e cortaríamos o vínculo com o agressor. Mas a realidade é muito mais complexa.

O agressor não é apenas um indivíduo externo. Ele está dentro de nós, implantado por séculos de domesticação feminina. Desde o nascimento, somos moldadas para sermos dóceis, obedientes e subordinadas. Antes mesmo de aprendermos a falar, já sentimos as marcas dessa colonização. Nossos corpos são manipulados para atender às expectativas de gênero: nossas orelhas são furadas, nossa liberdade de movimento é limitada, somos educadas a não gritar, não correr, não ocupar espaços. Desde cedo, aprendemos que “ser mulher é sofrer”.

Essa domesticação progride ao longo da vida: somos ensinadas que menstruar é sujo, que a perda da virgindade é uma derrota, que o casamento é o ápice da realização feminina, que a maternidade é inevitável, e que todo o peso do cuidado e da sustentação do mundo recai sobre nossos ombros. Sustentamos a vida ao nosso redor – emocionalmente, materialmente, fisicamente – enquanto os homens mantêm o poder, e nós somos levadas a acreditar que isso é natural.

A Colonização da Mente e do Corpo

Essa estrutura nos captura de forma tão profunda que passamos a amar nossos algozes. Fomos treinadas para admirar e sustentar o universo masculino, enquanto ignoramos nossa própria força e autonomia. Há séculos, as mulheres que desafiaram essa estrutura foram brutalmente silenciadas – rotuladas de bruxas, escravizadas, estupradas e queimadas na fogueira. Com o tempo, aprendemos a nos conformar, esquecendo que nossos corpos eram livres, que tínhamos direito ao prazer e que podíamos correr sem medo.

Essa amnésia coletiva resultou em um “desmaio por dentro”. Paralisação diante da violência tornou-se um reflexo condicionado, um medo visceral que nos impede de reagir. A explicação convencional de que essa paralisia se deve à diferença de força física entre homens e mulheres não se sustenta: em outras espécies, as fêmeas não paralisam diante dos machos, mesmo quando há diferenças de tamanho e força. A paralisação feminina é uma construção histórica, uma consequência direta da colonização de nossas mentes e corpos.

O Agressor Interno

O verdadeiro desafio não é apenas combater os agressores externos, mas desinstalar a voz do opressor que habita em nós. Essa voz foi implantada como um comando, levando-nos a duvidar de nossa capacidade de nos defender, a aceitar o inaceitável e a buscar a validação de nossos algozes. Quando essa voz interna encontra um agressor externo, ela se funde a ele, nos imobilizando.

Despertar desse desmaio é um processo complexo, mas essencial. É um trabalho que exige coragem para distinguir nossa própria voz da voz do opressor. A voz que nos leva à violência, ao silêncio e ao desamor-próprio não é nossa. Ela é o eco de séculos de domesticação.

A Autodefesa Feminina como Caminho

A autodefesa feminina vai muito além de aprender a reagir fisicamente a um ataque. É um processo de descolonização do corpo e da mente. É o ato de reaprender a ouvir nossa própria voz, de reconectar-nos com nossos instintos de autopreservação e de recuperar os mecanismos de defesa que nos foram roubados.

Esse despertar é um processo de cura e libertação que atravessa gerações. Cada grito, cada movimento de resistência, cada “não” dito com firmeza são passos para desinstalar a voz do opressor e reinstalar a nossa. A autodefesa não é apenas uma técnica, mas uma revolução pessoal e coletiva que desafia séculos de opressão.

O desafio de descolonizar o corpo-mulher começa com o reconhecimento de que o agressor interno não é nossa essência. Ele é uma construção social que pode – e deve – ser desfeita. Ao distinguir nossa voz da dele, abrimos espaço para uma existência plena, livre e soberana. A autodefesa feminina é o caminho para esse despertar, para que possamos, finalmente, viver sem medo e sem submissão, recuperando o direito de sermos protagonistas de nossas próprias vidas.

A Autodefesa Feminina como Política Pública Transformadora

Descolonizar o corpo e a mente das mulheres não é apenas uma questão individual; é uma responsabilidade coletiva. O aprendizado da autodefesa feminina, mais do que uma ferramenta de autoproteção, deve ser reconhecido como uma estratégia de transformação social e estruturado como uma política pública integrada.

A violência contra a mulher é uma questão sistêmica que não será resolvida apenas com leis reativas e repressivas, como a Lei Maria da Penha. Apesar de sua importância, ela intervém quando a violência já alcançou níveis críticos. É urgente a implementação de políticas públicas preventivas que empoderem as mulheres desde o início, antes que a violência se manifeste. E que reconheçam que a mulher possa ir além do papel de vítima. E protagonizar soluções coletivas.

As políticas públicas enxergam como muito possível a recuperação do agressor através de rodas de conversa de descontrução da masculinidade que tem tido resultados bastante duvidosos ao longo de anos de aplicação. Muitas vezes esses homens apenas se tornam agressores mais complexos, mas a violência segue em curso. O Estado tende a acreditar que homens agressores podem ser protagonistas do combate à violência contra à mulher. Mas não acredita que as mulheres possam ser protagonistas de sua própria luta por sobrevivência e bem-viver.

A autodefesa feminina é a política que reconhece esta possibilidade de protagonismo feminino. Que responde à violência em sua própria altura. Que quebra o mito da supremacia física dos homens. A Defesa Pessoal Feminina, incorporada como política pública, pode atuar em diversos níveis:

  1. Educação e Capacitação: Oficinas de autodefesa nas escolas, espaços comunitários e empresas, abordando não apenas técnicas físicas, mas também o reconhecimento das múltiplas formas de violência, protocolos de segurança e fortalecimento de redes de apoio.
  2. Saúde Mental e Emocional: Políticas que promovam o resgate da autoestima e autonomia das mulheres, tratando os impactos psicológicos da violência e capacitando-as para quebrar ciclos de dependência emocional e abuso.
  3. Formação de Multiplicadoras: Criação de programas nacionais que formem mulheres como instrutoras de autodefesa, especialmente em comunidades vulneráveis, para que possam multiplicar o conhecimento em seus territórios.
  4. Revisão Estrutural de Serviços Públicos: Transformar delegacias, escolas e unidades de saúde em espaços realmente acolhedores para as mulheres, com profissionais treinados para lidar com a violência de gênero de maneira ética e não revitimizante.
  5. Articulação com Educação Popular: Inspirada em Paulo Freire, a autodefesa pode ser integrada a processos de educação emancipadora, fomentando a autonomia e a consciência crítica das mulheres sobre suas realidades e seus direitos.

Fazer da autodefesa feminina uma política pública é reconhecer que a segurança das mulheres não se limita ao âmbito policial ou jurídico. É oferecer ferramentas práticas e simbólicas para que as mulheres possam, de fato, transformar suas vidas e seus contextos.

Essa proposta vai além de conter a violência: ela desafia o sistema que perpetua a desigualdade de gênero. Uma política pública de autodefesa feminina não apenas protege; ela emancipa, descoloniza e empodera, criando uma sociedade mais justa, na qual mulheres possam existir em plenitude, livres do medo e da submissão.

Ao investir na autodefesa como política pública, o Estado responde à violência contra a mulher, e também reafirma o compromisso com a construção de um futuro no qual a igualdade de gênero seja uma realidade em curso, e não uma promessa.

 

Bibliografia:

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